Venho a tempo perquirir se estamos preparados para responder aos anseios e às necessidades sociais dos jurisdicionados?
A tempestade de críticas habitualmente interfere no comportamento humano e provoca desgastes que levam ao desalento e à desesperança. Às vezes saber que outros já experimentaram as mesmas dificuldades pelas quais estamos passando, nos encoraja e nos leva a observar com acuidade o tipo de providência que foi adotada e a se adotar. Sob esse prisma, é oportuno trazer a baila um decreto imperial muito singular que nos permite observar a trajetória da Justiça no mundo e refletir sobre a necessidade da adoção de formas alternativas de solução de conflitos. Na China do século VII, o imperador Hang Hsi (cf. Legal Institutions in Manchú China, Van der Sprenkel, 1962, p. 77), no exercício das suas funções, expediu o seguinte decreto externando a sua imperial vontade, verbis:
“Ordeno que todos aqueles que se dirigirem aos tribunais sejam tratados sem nenhuma piedade, sem nenhuma consideração, de tal forma que se desgostem tanto da idéia do Direito quanto se apavorem com a perspectiva de comparecerem perante um magistrado. Assim o desejo para evitar que os processos se multipliquem assombrosamente, o que ocorreria se inexistisse o temor de se ir aos tribunais. O que ocorreria se os homens concebessem a falsa idéia de que teriam à sua disposição uma justiça acessível e ágil. O que ocorreria se pensassem que os juízes são sérios e competentes. Se essa falsa idéia se formar, os litígios ocorrerão em número infinito e a metade da população será insuficiente para julgar os litígios da outra metade da população.”
É inegável que a visão plúmbea do Imperador Chinês mostra-se absolutamente inoportuna e extemporânea. No entanto, face às exacerbadas críticas encetadas ao Poder Judiciário, e sem medo de ser injusta ou equivocar-me, tenho para mim que foi com a criação dos Juizados de Pequenas Causas, ocorrida em 1984, que se processou a mais significativa mudança na estrutura do Judiciário brasileiro, pois, por meio deles foi aberta mais uma porta de acesso à Justiça no País. Nesse contexto, as necessidades sociais multifacetadas tem exigido do Poder Judiciário um papel singular, como nos mostra o compromisso internacional assumido pelo Brasil em março de 1998 junto aos Supremos Tribunais de Justiça Ibero-Americanos em Caracas, no sentido de modernizar a administração da Justiça, tal como sugerido pelos Chefes de Estado e de Governo Ibero-Americanos na Declaração de Margarita em novembro de 1997. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, naquele ato representado pelo Ministro Carlos Mário Velloso, na época Vice-Presidente da Excelsa Corte, com os demais representantes das Cortes Supremas dos demais países, após concluírem que a crise de nossas sociedades é a crise de nossas instituições, e enfatizarem a importância da independência e autonomia do Poder Judiciário como instrumento de garantia dos direitos humanos; ressaltando, que ações conjuntas, como intercâmbio recíproco de experiências e informações, devem ser adotadas entre as nações, subscreveram compromisso cujo teor é o seguinte:
“As Cortes e Supremos Tribunais Ibero-americanos presentes nesta Reunião de Cúpula, conscientes da importância de garantir de maneira eficaz o acesso à Justiça, reconhecemos a necessidade de promover mecanismos alternos de resolução de conflitos através das seguintes políticas:
Promover a utilização dos mecanismos alternos de resolução de conflitos.
As Cortes e Supremos Tribunais deverão estabelecer o âmbito de aplicação dos mecanismos de solução alterna de conflitos.
Realizar as políticas mediante as seguintes ações:
1. Elaborar projetos relacionados com a tipificação dos assuntos que devem ser submetidos aos mecanismos alternos na resolução de conflito.
2. Elaborar um estudo de custos econômicos e da oportunidade dos mecanismos de solução alterna de conflitos.
3. Avaliar a eficiência da conciliação, da resolução de controvérsias em igualdade (juízes de paz) e da arbitragem interna e internacional.
4. A criação de um sistema de conciliação e arbitragem ibero-americano.
5. Educar para a negociação dos conflitos, tanto os cidadãos quanto os que participarem de cada mecanismo.
6. Promover a criação de Centros de Mediação como outro mecanismo de resolução alterno de conflito.”
Cingidos a esse compromisso internacional, devidamente chancelado pelo Supremo Tribunal Federal, entendemos que é dever do Poder Judiciário brasileiro apoiar as iniciativas de adoção de vias alternativas de resolução de conflitos. A introdução das formas alternativas de solução de conflito – ADR, teve sua razão de ser fulcrada na chamada crise do processo, que vem sendo motivo de preocupação para muitos países, dentre os quais, os EE.UU que por mais de vinte anos investem maciçamente nesse instrumento eficiente de desobstrução do Poder Judiciário. A determinação de avançar na adoção de soluções alternativas de conflito ocorreu logo após uma histórica manifestação do Presidente da Universidade de Harvard, Prof. Derek Bok, respeitado membro da comunidade jurídica americana, que avaliando o sistema processual tradicional utilizado pelo Poder Judiciário americano, a ele referiu-se como “… um sistema que foi semeado de esperanças tiradas daqueles que encontram demasiada dificuldade de compreender, demasiado quixotesco para impor respeito e demasiado caro para obter resultado prático, concluindo que: “… os resultados não justificam os custos: muitas leis e pouca Justiça, muitas normas e poucos resultados”.
Nesse quadro de desânimo, chegando às raias da indignação, os jurisdicionados americanos promoveram então um movimento que acabou por inspirar a história comercial americana. As associações comerciais e determinados setores industriais, o marítimo, o mercado de valores, de peles e sedas, criaram formas privadas de resolução de conflitos. A eficiência do novo método de resolução de controvérsia logo foi comprovada e, para incentivar o uso desse instrumento, importantes personalidades americanas passaram a adotá-lo para assuntos pessoais, como são exemplos:
¨ George Washington – quando incluiu uma cláusula de arbitragem em seu testamento para que eventual disputa que sobreviesse a seus herdeiros fosse solucionada por este “meio alterno”;
¨ Abraham Lincoln – quando exerceu a advocacia, atuou como árbitro em uma célebre disputa entre granjeiros acerca da delimitação de suas propriedades.
A experiência bem sucedida na área comercial levou os americanos durante a Segunda Guerra Mundial, por meio do Congresso, a estender o novo método para a solução de conflitos trabalhistas, evitando tumultos que poderiam ser provocados por trabalhadores em prejuízo dos acontecimentos bélicos. E, foi assim que nasceu a Junta Laboral de Guerra e, em l947, criada pelo Congresso americano uma oficina independente para resolução de conflitos trabalhistas denominada Instituto Federal de Mediação e Conciliação. Mesmo com todo esforço de modernização, a sociedade americana expressava intenso descontentamento com a administração da Justiça, fato que levou o juiz Warren Burger, da Suprema Corte Americana, a convocar a célebre Conferência de Roscoe Pound. Ao abrir a Conferência, o Juiz Burger assim expressou o seu temor e preocupação:
…que a sociedade americana poderia ser invalidada por bandos selvagens de advogados famintos, como uma praga de gafanhotos e um exército de juízes, e profetizou que logo estariam chegando a um ponto em que o sistema judicial, tanto estadual, quanto federal, poderiam literalmente, afundar antes do final do século.
Referida Conferência serviu para reavivar o interesse das instituições tradicionais para as vias alternativas de resolução de conflitos, mas, conforme revigoravam-se as forças do movimento, permaneciam vivas as diferenças de valores e metas que envolviam os conflitantes, o que fez surgir uma diversidade de técnicas e filosofias para implementação de soluções razoáveis a mediá-los, tais como o são a negociação (registre-se, é disciplina obrigatória nas faculdades de Direito americanas), a mediação, a arbitragem e o juiz de aluguel (rent a jugde).
Acredito que todos os segmentos que integram a carreira jurídica (advogados, juízes e membros do ministério público) estão preocupados com o resultado do seu trabalho, não só sob o prisma pessoal da eficiência e da qualidade dos serviços prestados, mas também, sob uma ótica social, que não perde de vista os custos que envolvem a jurisdição emperrada pela burocracia, bem como, seus reflexos sobre o erário público e, acima de tudo, com a consciência de que, tal como hoje é perseguida, a solução dos conflitos não se apresenta senão impotente ao alcance da paz social – seu fim maior. Inumeráveis fatores nos levam a concluir que é preciso mudar o quadro desolador e aflitivo que envolve a qualidade e eficiência da prestação dos serviços judiciários que vem sendo desenhado desde os anos 60, época em que já se comentava acerca da crise do Supremo Tribunal Federal.
Ouso dizer, salientando que é pensamento pessoal, que é preferível ao juiz não deter o monopólio do ato de julgar a tê-lo e prestar um serviço jurisdicional ineficiente e extemporâneo. Já é hora de democratizarmos a Justiça brasileira. Receio, e volto a gizar que se trata de pensamento próprio, que a manutenção deste sistema ineficiente de prestação jurisdicional pode ser instrumento de fracasso da Justiça, enquanto pilar da democracia, porque ao invés de cumprir sua função de promover a paz social, estará, a contrario sensu, inviabilizando a própria convivência social. Por que não dizermos até ser possível que alguém conclua ser desnecessária a própria instituição? Urge afastar a nossa formação romanista, baseada na convicção de que só o juiz investido das funções jurisdicionais é detentor do poder de julgar.
Há muito que os processualistas italianos já visualizavam e afirmavam a equivalência das jurisdições. O fenômeno da globalização que une inexoravelmente os povos em mercados comuns; as relações jurídicas cada vez mais complexas; as novas formas de contratação; os novos institutos em face da posse e da propriedade exigem do juiz contínuo aperfeiçoamento técnico, realidade hoje inviável no Brasil, em função do volume exagerado de trabalho nos Tribunais em número sempre crescente de processos, graças ao incentivo que o cidadão tem recebido para exercitar a cidadania, procurando o leito adequado para solucionar os conflitos.
É imperioso salientar que muito se tem feito para amenizar esse quadro desanimador. A própria Reforma Processual teve essa finalidade, e, após localizar os pontos de estrangulamento do processo, introduziu as tutelas diferidas como a antecipação da tutela, a adoção do procedimento monitório e o aumento significativo do rol dos títulos executivos, tudo com vistas a evitar o alongamento do processo. Não podemos negar que a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais abriu novos horizontes, mas faltava ainda tirar o Brasil da contramão da história, isto é, colocá-lo no rol dos países que incluíram no ordenamento jurídico uma forma “alterna” de solução de conflito. O significativo passo foi dado com a Lei 9.307/96, cognominada carinhosamente Lei Marco Maciel. Aproveito a oportunidade para convidar a todos a prestar uma singela homenagem ao então Senador Marco Maciel, que se empenhou de maneira apostólica para fazer tramitar com sucesso no Congresso Nacional a Lei de Arbitragem e ainda obter a sanção presidencial.
A Lei de Arbitragem tem por fim solucionar conflitos relativos aos direitos patrimoniais disponíveis, por meio da intervenção de uma ou mais pessoas, com poder delegado de decisão que seja imposto aos conflitantes e, como conseqüência, seja por eles acatada, e apresenta como vantagens tornar prescindível a intervenção estatal, e ser a sentença arbitral reconhecida como título executivo judicial. Sabemos que a ineficiência na prestação jurisdicional leva-nos ou de volta aos primórdios da humanidade, quando prevalecia a justiça pelas próprias mãos, o olho por olho, dente por dente, ou ao câncer social do desequilíbrio comportamental, porquanto, está cientificamente comprovado que a falta de acesso ao Judiciário, bem como, a pendência indefinida de processos, tem reflexos nocivos sobre os cidadãos, que passam a vivenciar sentimento de descrença, revolta com a impunidade, aflição e angústia, que podem evoluir para males psicossomáticos, como depressão, apatia, agressividade, desânimo e desesperança.
Neste aspecto, abro um parênteses para citar a valiosa experiência Uruguaia, que, por intermédio de um Convênio Interinstitucional entre o Poder Judiciário e o Ministério da Saúde, instalou em cada hospital público um balcão de atendimento ao cidadão, mantendo plantão com um funcionário da Justiça, um mediador e visita diária de um juiz. Tenho absoluta certeza que a almejada mudança passa necessariamente por uma revolução de mentalidade e pela assunção de uma nova postura de todos membros dos vários segmentos jurídicos, bem como, da própria sociedade, e se consubstancia na conscientização de que o árbitro, o mediador e os conciliadores também são capazes de solucionar conflitos jurídicos com as mesmas condições técnicas de um juiz de direito investido nas funções jurisdicionais.
Precisamos experimentar um novo modelo de Justiça participativa, que redundará na necessária e imperiosa democratização da Justiça. Importante ressaltar também o instituto da Conciliação, procedimento que prioriza a comunicação livre entre os pensamentos em conflito, desarmando os espíritos e proporcionando a continuidade das relações sociais entre os contendores, com a descoberta da visão produtiva que o conflito pode ensejar.
Nessa esteira, pinço uma das mudanças mais recentes e bem sucedidas de criação de mecanismos céleres de negociação, transcorrida no Direito do Trabalho, como foi o caso das Comissões de Conciliação Prévia, as quais contribuíram para agilizar a conciliação de conflitos individuais do trabalho.
Hoje, segundo dados do Ministério do Trabalho, há aproximadamente 1500 Comissões constituídas, com 1 milhão e 500 mil acordos trabalhistas concretizados em um período médio de 7 dias, quando a tramitação de processos concernentes a direitos subjetivos idênticos pode se perpetuar por sete a dez anos. Há de se ressaltar ainda instituto singular, a respeito do qual alguns asseveram tratar-se da Justiça do Terceiro Milênio, qual seja: a Mediação – técnica de resolução de conflitos não adversarial largamente utilizada em países do Oriente e Ocidente, cuja eficiência reside na diluição do conflito. O mediador auxilia as partes na busca da solução do litígio, sem imposição de sentenças ou de laudos, preservando-lhes os interesses por meio de acordos criativos de benefícios recíprocos. Como se vê, os ventos da modernidade indicam, nas atuais circunstâncias, a necessidade imperiosa de mudar a tradicional forma de trabalhar, tanto dos juízes quanto dos advogados, no sentido de evitar o máximo possível a beligerância, investindo no esgotamento das tentativas de solução extrajudiciais, abandonando as atitudes formalistas de “manter por manter” o antagonismo estéril e a postura de confrontação inútil dos contendores. A adoção de formas alternativas de solução de conflitos propugna seu entrelaçamento profícuo com os membros do Poder Judiciário, porque a colaboração mútua é a única forma de fazer vingar tais vias alvissareiras no País. Insisto que devemos investir incessantemente, ainda que sob a forma de catequese, na imprescindível mudança de mentalidade dos Juízes de direito a quem serão direcionados eventuais pedidos de providências em favor da adoção de formas alternativas de solução de conflitos, porque o hábito que nos atrela ao formalismo e ao tecnicismo, que orientam o Código de Processo Civil, poderá frustrar os objetivos perseguidos pelos procedimentos diferenciados.
Entre o juiz e o árbitro, por exemplo, o relacionamento deve ser idêntico àquele utilizado no cumprimento das cartas precatórias. É um colega solicitando ao outro colega auxílio para o efetivo desempenho do trabalho jurisdicional. E, nesse momento, é de fundamental importância gizar o fato de que foi a exacerbação do tecnicismo e do formalismo que fizeram com que o excesso de papéis que compõem os autos do processo nos levassem a esquecer a relação humana existente em cada processo. Creio que seria inteligente manter viva em nossa lembrança a trajetória de desgaste sofrido pelo Poder Judiciário, a fim de não transportarmos para o campo das novas formas de solução de litígios uma das causas que maculou a imagem da Justiça brasileira.
Concluo lembrando uma história que já se esvai na noite dos tempos, mas me oportuniza invitar-lhes à necessária reflexão sobre a adoção de formas alternativas de solução de conflitos:
Numa terra em guerra, havia um rei que causava espanto.
Cada vez que fazia prisioneiros, não os matava, levava-os a uma sala, onde havia um grupo de arqueiros em um canto e uma imensa porta de ferro no outro, na qual estavam gravadas figuras de caveiras cobertas por sangue.
Nesta sala ele os fazia ficar em círculo e, então, dizia: “vocês podem escolher entre morrer flechados por meus arqueiros, ou passar por aquela porta e por mim lá serem trancados.”
Todos os que ali passaram, escolhiam serem mortos pelos arqueiros.
Ao término da guerra, um soldado que por muito tempo servira o rei disse-lhe:
-Senhor, posso lhe fazer uma pergunta?
-Diga, soldado.
-O que havia por detrás da assustadora porta?
-Vá e veja. Disse o Rei.
O soldado então a abre vagarosamente e percebe que, à medida que o faz, raios de sol vão adentrando e clareando o ambiente, até que totalmente aberta, nota que a porta levava a um caminho que sairia rumo à liberdade.
A adoção de formas alternativas de solução de conflitos está abrindo portas de esperança para todos os segmentos sociais e, sem dúvida alguma, realizará o sonho de liberdade e de ampliação da cidadania.
Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a pacificação social, sem jamais olvidar que tal propósito requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de se pensar a humanização da Justiça.
Fátima Nancy Andrighi
Ministra do Superior Tribunal de Justiça